*Spoilers a frente, mas esse é o tipo de filme que nenhum spoiler tira o brilho, para ser assistido várias vezes
Naqueles poucos minutos entre o “The End” da Vidas Passadas e as luzes da sala de cinema se acenderem eu continuei olhando para a tela. A sensação de que eu havia visto algo de uma profundidade abissal e uma delicadeza ímpar – coisas que dificilmente andam juntas – me dominava.
Pouco depois minha filha me perguntava sobre o significado do choro da protagonista Nora após se despedir da Hae-Sung e eu só consegui pensar em quando ela era muito muito pequena e a diretora da escolinha em que ela começava falou sobre todo sim estar carregado de vários nãos. Ela falava sobre a importância de apresentarmos menos opções para os pequenos escolherem porque é muito difícil lidar com a frustração de todas as portas que se fecham.
O choro de Nora não é o choro de alguém que perdeu um grande amor, mas de alguém que ali se despede da pessoa que ela foi, da cultura que um dia ela chamou de sua, do amigo que ela um dia acreditou casar e ter uma vida parecida com a de seus pais. Ela ali se despede de uma vida toda não vivida.
Acho que todos nós, em maior ou menor grau, passamos por algo parecido, ainda mais com a importância que as redes sociais ganharam em nossa vida: reencontrar aqueles que eram os melhores amigos de adolescência (e descobrir que hoje não tem qualquer coisa em comum), reencontrar aquele namoradinho com quem as coisas não foram longe, mas tinham tanto potencial (e achar que quem sabe agora vai). Se identificar com Nora não é tão difícil assim.
Junte-se a isso o fato de que somos, em grande parte dos brasileiros, filhos e netos de imigrantes. Pessoas que deixaram sua “identidade” cultural para trás em troca da chance de um futuro melhor – cada avô meu veio de um país, a única que não veio era filha de uma escrava e um português cujo nome eu nunca soube.
Nora um dia foi Na-young (Seung Ah-moon), uma garota coreana de 12 anos cujos pais decidem imigrar para o Canadá – achei interessante o filme apresentar como se aquela fosse uma decisão dela, preciso pensar mais sobre isso – e que alimenta sonhos grandiosos. Ela deixa para trás Hae-sung (Seung Min-vim), seu melhor amigo, que esteve ao seu lado em todos os momentos importantes até ali e com quem ela disse que se casaria.
Para quem parte o tempo passa muito mais rápido, são tantas coisas novas. Quem fica tem que lidar com a saudade, com a constante lembrança presente em todos os lugares compartilhados em uma realidade velha conhecida. Por isso Nora só se lembrará do velho amigo anos a frente, depois de ter imigrado novamente, dessa vez para Nova Iorque, enquanto a sombra dela segue com Hae-sung sempre. A ponto dele deixar uma mensagem desajeitada em um perfil de rede social relacionado ao pai da amiga cujo novo nome ele desconhece.
Essa mensagem leva ao reencontro digital e, claro, à romântica ideia de que algumas coisas estão destinadas a acontecer. Uma pena que a vida insista em estragar planos e seguir o fluxo dos acontecimentos mundanos: os cursos a serem feitos, os empregos aos quais precisamos se candidatar, o dinheiro que não sobre para uma viagem atravessando oceanos, a necessidade de foco para conquistar o que se quer.
Quando os dois finalmente estão na mesma cidade, uma Nova Iorque de muitas cores, mas sem abandonar um acinzentado que pode servir para nos lembrar que a vida quase nunca é como os coloridos contos de fada que assistimos quando crianças. Nora realizou boa parte de seus sonhos, casou-se com Arthur (John Magaro, maravilhoso no papel), ele também um autor em ascensão.
O encontro, então, coloca Nora em uma montanha russa entre sua identidade coreana e sua identidade americana. Entre os sonhos que ela tinha quando criança e com o que a vida lhe entregou a medida que envelhecia. Entre a pessoa que até dias atrás estava muito feliz com sua vida e a romântica ideia do amor de criança que se realiza na vida adulta.
Ao mesmo tempo em que existem possibilidades infinitas neste momento, ele também significa encerrar de forma definitiva essas possibilidade. É o momento de escolher apenas um dos caminhos e negar o outro.
O choro de Nora ao final do filme, um choro feio, barulhento e doído, é sobre tudo isso. E é impossível encerrar o filme sem pensar em todas as vezes em que fizemos, nós também, escolhas sem retorno.