Imagem de Anderson Bognar Gemelgo para o UOL
Desde ontem a noite chove forte na cidade de São Paulo. Depois de anos sem grandes transtornos, principalmente após o aprofundamento da calha do Rio Tietê e a construção de diversos piscinões, a cidade acordou em verdadeiro caos.
Quem acompanha o Twitter foi lendo, ao longo do dia, relatos de pessoas que ficaram duas, três, até cinco horas presos em seus carros. Na Rádio Eldorado o locutor lia os SMS recebidos dos ouvintes, um deles implorando que uma fábrica nas proximidades de onde ele estava parado com seu carro abrisse suas portas porque a água começava a subir e eles não tinham para onde fugir.
Também ao longo do dia foram surgindo textos sobre o assunto: um ótimo texto discutia se o poder público deveria ou não decretar feriado ou ponto facultativo, já que as pessoas continuavam saindo das suas casas porque dificilmente seus chefes entenderiam uma falta. Outro texto já adianta o que será o verão de 2010, quando as chuvas ficarem ainda mais constantes e fortes.
Eu confesso olhar tudo de cima: depois de anos atravessando a cidade – morava em Guarulhos e trabalhava no extremo sul da cidade, algo como 35 quilometros entre os dois pontos, e, em São Paulo, 35 quilometros são um absurdo – ao escolher o apartamento onde moro hoje pensei em distância do trabalho, na facilidade de transporte público e na ocorrência das enchentes sazonais.
Hoje posso optar entre metrô ou carro para vir ao trabalho (dificilmente venho de carro e adoraria vir de bicicleta) e se um dia as águas chegarem à altura de minha casa a cidade já terá acabado. Apesar do caos e loucura levei os habituais 15 minutos de todo dia, sem tumultos, sem desespero.
Mas sei que nem todo mundo tem condições de tal escolha: paguei mais caro por um apartamento menor do que eu poderia adquirir se continuasse morando em Guarulhos.
No final do dia de hoje, após pegar a minha filha na escola sem maiores transtornos, será distante a lembranças das vezes em que levei mais de quatro horas para voltar para casa ou das vezes em que assisti a um filme sozinha no Shopping Morumbi esperando o trânsito baixar.
Os problemas de hoje têm as mais diversas causas: a falta de planejamento que transformou a cidade de São Paulo numa cidade que privilegia o transporte individual; o crescimento acelerado que diminuiu as áreas de evasão da água; a falta de planejamento que substituiu as calçadas da Avenida Paulista, que apesar de seu estado propiciavam absorção devido ao espaço entre as pedras do mosaico, por um imenso bloco que concreto, eliminando mais árvores; a obra de alargamento das marginais, injustificável; a eliminação de piscinões devido a obras posteriores, como, por exemplo, o que aconteceu próximo ao estádio do Palestra após a construção do Shopping Bourbon (ou alguém não percebeu que a região só voltou a ter alagamentos após a construção do shopping, depois de mais de 20 anos de sossego?); a mudança climática que torna as chuvas mais fortes e mais imprevisíveis.
Apesar de todos os motivos apresentados acima, o que mais me chateia é que o tanto de gente que ainda acredita que o problema não é dele. Que acha que não tem nada de errado em jogar papel na rua ou não ensinar a seu filho que isso é errado; que é dono de fábrica que não trata de seu esgoto e acha que isso não tem problema; que vota nulo porque é metido a intelectual e é diferente de “tudo isso que está aí”; que não lembra em quem votou na eleição passada; que falta na reunião de condomínio porque é tudo um saco mesmo; que passa em cima do buraco e não avisa ao órgão responsável porque isso “não é problema dele”; que acha sacrifício demais deixar seu carro em casa e optar por outros transportes porque tudo é muito difícil.
É fácil demais pensar que o “Estado” é uma entidade separada da gente, da qual a gente pode falar mal a vontade e pode culpa pela maior parte das mazelas que vive. É fácil demais berrar aos quatro ventos a responsabilidade dos outros, difícil é lembrar de nós mesmos.
Tenho pena de quem, quase sem condição nenhuma, perde o pouco que tem após uma enchente ou após um desabamento, mas também sei que, boa parte deles, acha mais fácil ocupar uma área perigosa do que pagar aluguel em outro lugar.
Lembro de uma área próxima ao clube que frequentava na infância. Ela foi sendo tomada por barracos. Lembro de campanhas e mais campanhas para que eles não tomassem o local pelo risco de enchente, já que era ao lado de um córrego. Logo os barracos foram substituídos por construções de alvenaria, com carro na garagem, muita vezes mais de um. Eles nunca pagaram por aquele terreno, duvido que tenham pagado impostos. Quando as casas e bens foram perdidos em uma enchente eles fechavam ruas em protesto e pediam indenização do governo.
Não estou dizendo que eles mereceram passar por isso, ninguém merece, mas também não posso culpar o governo pelo que lhes aconteceu.
Meu pai me ensinou muitas coisas, três não me saem da memória nunca: que com trabalho e esforço eu conseguiria chegar aonde quisesse na minha vida; que eu nunca deveria chegar atrasada em compromisso algum, mesmo que isso significasse chegar uma hora antes; e que meu direito acaba aonde começa o direito do outro.
Meu pai, que um dia foi engraxate e pôde realizar o sonho de ver seus dois filhos se formando na faculdade, que escolheu morar numa rua de terra em uma Guarulhos ainda desabitada, mas que cabia no seu salário, me ensinou que eu preciso fazer minha parte para ser feliz e para entregar algo mais para minha filha.
Acho que, se cada pessoa que ficou presa em seu carro hoje pensar um pouquinho no que poderia mudar em sua vida de maneira a melhorar a vida de todos, e fizesse isso amanhã, e depois de amanhã, e depois de amanhã, São Paulo poderá renascer uma cidade melhor e mais humana.