É engraçado. Eu nunca pensei, assim conscientemente, que eu queria ser diferente dos meus pais. Acho estranho quando leio algo que fala dessas pessoas, que tiveram vidas tão diferentes da minha, criadas por pais tão diferentes dos meus (ou tão iguais?) e vivendo experiências mil, enquanto minha vida foi tão comum, tão sem grandes emoções, e as vejo falando do quanto queriam isso, ser diferentes, e sobre o quanto ficaram iguais.
Fui criada em uma família de classe média mesmo – sou do tempo em que cada classe não virava outras três ou quatro – que teve a casa comprada pelo financiamento da Caixa Econômica Federal – feito em 20 anos, mas quitado em 05 porque meu pai não dormia a noite de tanto pensar na dívida – com mãe dona de casa e pai que saia cedo para batalhar o pão de cada dia, rodando a cidade, sem curso superior, nem colegial ele tinha, gastando sola de sapato e deixando de almoçar para economizar o ticket e usar no fim de semana para comprar os frios da pizza que minha mãe fazia – sair para comer fora era um luxo dispensável. Lembro do meu pai falando que com o dinheiro gasto para dois comerem fora ele alimentava a família toda em mais de uma refeição.
Quando comecei a aprender sobre ditadura e o povo que foi exilado porque lutou contra o que estava acontecendo fui correndo perguntar ao meu pai como tinha sido. A resposta veio seca e simples, coisa de espanhol mesmo: eu não tive tempo para isso, eu precisava trabalhar para colocar dinheiro em casa.
Sempre olhei meu pai com um orgulho absurdo que só filhos podem sentir. Ele contava como tinha começado trabalhando criança em uma tecelagem para ajudar em casa, enquanto meu avô sem estudo era metalúrgico, depois de ter ajudado a construir Brasília ao chegar ao Brasil fugido da Espanha, acreditando que aqui ia encontrar um futuro melhor.
Posso ter deixado alguns sonhos de lado por causa dessa coisa dele com o certo, com o prático, com o necessário. Mas ele fez o melhor que pôde, assim como eu tento todo dia.
Meus pais, assim como meus tios, moraram logo depois do casamento em uma das casas atrás da casa dos meus avôs. Era um daqueles terrenos enormes, três casas construídas, e cada filho começou sua vida ali antes de ter seu próprio canto, seu próprio espaço. Éramos aquele monte de primos e primas no mesmo quintal, correndo, brigando, crescendo juntos.
Depois fomos morar na nossa casa. A rua era de terra. A cidade era Guarulhos. Porque lá casa era mais barato. E de lá ia meu pai todo dia atravessar a cidade para trabalhar, o trânsito não era o de hoje, mas o cansaço, eu acho, devia ser o mesmo.
Cresci tendo educação firme. Em casa não se falava, não se fala ainda, palavrão, se chama pai e tio de senhor e não se grita. Acordávamos cedo para a escola, o almoço quase sempre tinha ovo frito (eu adorava e adoro aquela gema mole molhando meu pão) e a janta era com todo mundo a mesa da cozinha assistindo Jornal Nacional em uma televisão de 14″ polegadas.
Tinham broncas, às vezes eu ficava triste. Lembro de meu irmão de vez em quando provocando meu pai a ponto de fazer com que ele cumprisse a ameaça quase sempre ligada à uma cinta – mais uma coisa de espanhóis, já confirmei com muita gente que conheço.
Lembro de achar meu pai invencível e inquebrável. Ele é uma pessoa prática ao extremo, sem tempo para frescura, sem tempo para chorar sobre o que não conseguiu foi, pouco a pouco, conquistando seus sonhos. Colocou os dois filhos na faculdade, conseguiu dar um carrinho para cada um deles quando completaram 18 anos. Comprou sua caminhonete sonhada, comprou sua casa de praia para que ele pudesse pescar sempre que quisesse.
Meu pai me ensinou o valor do trabalho – sempre tive, graças a ele, a certeza de que, se eu trabalhasse, eu conquistaria tudo que quisesse e a importância da família.
Meu pai nunca se envolveu em política, minha família nunca foi de freqüentar nada que fosse badalado e nunca usou roupa de marca. Troca de carro só acontecia quando necessária, não para se ter o carro do ano, e roupas e móveis eram herdados dos mais abastados, sendo repassados quando a gente também melhorava de situação.
Mesmo depois dos 18 anos eu tinha horário para chegar em casa e só fui chegar de madrugada mesmo, depois da uma da manhã, depois dos 23, 24 anos de idade. Sempre precisávamos dizer aonde estávamos e com quem. Viagens com namorados eram proibidas.
É claro que algumas vezes eu menti, bem poucas na verdade, e é claro que algumas vezes brigamos, algumas brigas feias e doloridas. Mas o mais importante estava lá: a certeza de que eu tinha a quem recorrer se eu errasse e os valores que ele me transmitiu.
Hoje a gente procura a felicidade em tantas coisas efêmeras. Temos tantas coisas das quais não precisamos e procuramos por mais. Quando a felicidade, aquela de verdade, está em nós mesmos.
Está no papel que a criança brinca quando é bebê, almoços cheios com pessoas falando alto e crianças correndo por entre as cadeiras, andar na praia no fim de tarde quando cai a chuva fina do verão, sorriso de filho quando descobre a pipoca doce, dos velhos e novos amigos, conquistas difíceis e saborosas.