São tempos difíceis na cidade de Gotham. Pobres mais pobres, ricos mais ricos, violência nas ruas, políticos nos jornais. A referência clara de Coringa, desde o logo antigão da Warner até as ruas da cidade, são os anos 80, porém a realidade atual é parecida demais para que não pensemos neste mundo louco em que vivemos hoje.
“Sou só eu ou está ficando cada vez mais louco aqui?”, pergunta Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) para a assistente social responsável por seu caso. Ele deixou a prisão há pouco, toma sete medicamentos diferentes, mas não se sente melhor. Sua vida dividida entre ser invisível, quando em suas roupas normais, ou desprezado, quando vestido de palhaço – Happy, seu apelido, trabalha para uma empresa de palhaços por hora, a Hahaha, mas sonha em ser um comediante de sucesso.
Sonha enquanto, junto com sua mãe, assiste ao programa de Murray Franklin (Robert De Niro), mas a realidade insiste em lhe jogar na cara que isso não vai acontecer. Fleck é um homem à beira do abismo, sobre a linha tênue que separa a loucura da sanidade. Linha forçada diariamente pelo sentimento de inadequação, pela frustração de ser empurrado cada vez mais para o fundo enquanto assiste injustiças, corrupção e violência.
Se faz graça para uma criança no ônibus recebe violência, se reage ao ataque de um grupo de garotos acaba no chão ferido; ao aceitar a ajuda de um colega, perde seu emprego; o sistema falhou em proteger a ele e sua mãe, o sistema não os enxerga.
Até que se deixa levar pela fúria e vê seu rosto na capa dos jornais, vira notícia em rede nacional e se torna símbolo de um movimento a que não pertence, Fleck pela primeira vez se vê reconhecido de alguma forma – qualquer forma.
“Às vezes eu lembro de uma maneira, ora outra… se eu vou ter um passado, prefiro que seja de múltipla escolha Ha! ha ha!”.
Das versões de passado já vistas pelo público nas revistas e filmes, Coringa pega algumas referências, mas segue caminho próprio. Um caminho que, desde o anúncio do filme, se tornou controverso – em 2012 um homem matou 12 pessoas e feriu mais 70 ao entrar atirando em uma sessão de The Dark Knight Rises gritando “Eu sou o Coringa”, motivo pelo qual a Warner chegou a receber cartas pedindo que não exibisse o filme. Além disso, o medo de que o filme inspirasse ataques por parte de membros dos grupos conhecidos como incel gerou outras críticas.
O roteiro de Coringa, em verdade, nos lembra que, ainda que vilões possam usar obras de arte como justificativa para os seus atos, a verdade é que estes são o resultado de muitos outros fatores e estas obras nem ao menos podem ser consideradas gatilhos, no máximo usadas como desculpas.
Principalmente ele não apresenta desculpas para sua maldade (medo que eu tinha): o Coringa é um psicopata. Suas fragilidades psicológicas e os sofrimentos que enfrenta não são justificativas para a violência que ele abraça, mas fazem parte do quadro. E Phoenix faz um trabalho magistral ao mostrar como o Arthur quebrado e frágil se torna o Coringa que conhecemos.
Em verdade, o roteiro traça um paralelo eficiente entre herói e vilão, ainda que o primeiro não apareça na tela: os quadrinhos sempre deixaram claro que Batman não é a mais sã das pessoas e que tem sentimentos conflitantes sobre seu papel como justiceiro – lembrando que o hospício Arkham sempre teve papel central em suas tramas.
Ainda: Coringa é um projeto independente da nova versão do herói morcego, mas o trabalho do ator é tão bom que eu realmente gostaria de vê-lo reprisar o papel, bem como a atmosfera dos quadrinhos que ele foi tão feliz em retratar, mesmo não sendo um filme de super-heróis, mas o retrato dolorido e profundo da perda da humanidade de alguém.
Coringa chega aos cinemas nesta quinta-feira, dia 03 de outubro, com distribuição Warner Pictures Brasil.