Neve Negra, uma tragédia familiar que você precisa assistir

Quem confia os seus segredos a outra pessoa, faz-se escravo dela. – Baltasar Gracián Y Morales, Jesuíta e escritor espanhol do Século XVII

Estréia hoje nos cinemas nacionais o longa Neve Negra, segundo filme do diretor argentino Martin Hodara, também responsável pelo roteiro, escrito há sete anos e já na época compartilhado com Ricardo Darín, seu amigo há mais de 20 anos que, no papel de Salvador, atua em seu 49º filme.

Além de Darín, seu elenco central conta com a presença de Leonardo Sbaraglia (No Final do Túnel) e da atriz espanhola Laia Costa (Victoria).  Sbaraglia, na verdade, conheceu o roteiro pouco depois de Darín e desde então o principal desafio dos três foi conseguir financiamento para o projeto. E que a agenda dos dois atores principais pudesse ser combinada em uma época do ano com muita neve (a quarta personagem principal do filme).

Como o próprio Hodara descreveu em sua passagem por São Paulo na semana passada, Neve Negra é uma tragédia familiar, uma trama sombria, ambientada numa localidade isolada e sempre coberta pela neve.

Uma herança herdada é o motivo do reencontro dos irmãos Salvador (Darín) e Marcos (Sbaraglia). O pai (Andrés Herrera) acaba de morrer, o que motiva a volta para casa de Marcos, que morava na Espanha, trazendo consigo sua mulher, Laura (Laia Costa), que está grávida.

Além de se despedir propriamente do pai, Marcos e Laura esperam que Salvador aceite a venda das terras recebidas como herança, terras em que se localiza o chalé em que ele viveu isolado por toda sua vida. Algo que ele não está disposto a fazer.

A tensão existente entre os irmãos fica explícita logo nos primeiros instantes do filme, sem que saibamos do porquê. As respostas a essa pergunta são fornecidas aos poucos, com parcimônia, revelando pistas à medida que os irmãos se enfrentam e se evitam.

O longa se passa em duas épocas diferentes, presente e passado. Os personagens, em suas diferentes fases, se misturam e acabam revivendo, pouco a pouco, os acontecimentos que levaram a seu afastamento.

Um dos trunfos do longa é a maneira que o diretor usa para alternar as cenas entre passado e presente: as transições são feitas sem corte, sugerindo que os traumas e feridas do passado ainda não estão cicatrizados, as cenas ocorrem no mesmo cenário e são seus personagens que mudam – o que Hodara disse ter desafiado sua equipe de produção, já que as transições foram feitas sem o uso de efeitos.

A neve apresenta-se como o único elemento estável e contínuo ao longo da narrativa, presente nos dois tempos em que se passa história, e sempre sugerindo uma violência ou hostilidade contida. Sabemos que ele está ali. É quase palpável, e sabemos que ela irá explodir em algum momento. E, acreditem em mim, vocês irão sentir frio ao longo do filme.

Apesar da tensão estar centrada principalmente na relação entre Salvador e Marcos, é Laura o personagem que cresce ao longo da trama. A princípio uma espectadora passiva deste confronto familiar, Laura progressivamente se afirma no espaço entre os dois irmãos, manifestando habilidades inesperadas em vários sentidos. Ela é capaz de desconcertar o público com um único olhar.

O final é surpreendente e deixa, sabiamente, algumas questões no ar. Entre elas a de nos perguntarmos até onde vai a perversidade nas relações humanas, principalmente no que toca às relações familiares.

Não percam!

A obra é uma coprodução de Argentina e Espanha e teve suas cenas gravadas em Andorra, nos Pirineus, e em Buenos Aires. Em Andorra foi construído o chalé que serve como cenário para quase todas as cenas do filme e no qual trabalharam um total de 17 profissionais durante a filmagem. Após o final desta, o chalé foi desmontado, ainda que Hodara tenha confessado a vontade de queimá-lo.

Se o cenário no local era ideal para o que ele havia planejado para o filme, ele também ofereceu desafios, principalmente quando, ao longo de um mesmo dia as mudanças climáticas alteravam toda a programação.

Na Argentina os desafios vencidos foram recompensados: Neve Negra é a produção nacional mais assistida no país em 2017 levando mais de setecentas mil pessoas ao cinema. Na Espanha o desempenho também foi excelente chegando a figurar como o 16º filme mais visto no final de semana de sua estreia.

Segundo Hodara, se queremos que mais pessoas vão ao cinema, devemos fazer filmes melhores. E foi exatamente isso que ele realizou.

 

Escrito por Carlos Miletic

Apaixonado por literatura e cinema, não resiste a um filme de terror, muito menos a um livro de mistério. John Wick é seu modelo e Stephen King o seu pastor.

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