Pais e Filhos ou: A Mais Longa das Despedidas

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Nunca escondi meu carinho e admiração por Reinaldo Azevedo. Acima das opiniões políticas, que no caso eu compartilho quase que de um todo, ou das questões religiosas, em que, mais uma vez, temos tanto em comum, admiro seu jeito de colocar no papel suas idéias e crenças, sua maneira de defender seus pontos de vista, mesmo que controvertidos, seu trato da língua portuguesa.

Reinaldo tem duas filhas. Nestas últimas duas semanas ele esteve de férias. Em seu retorno brindou os leitores com um texto muito bonito que fala da fase da vida em que nossos filhos deixam de ser nossos para ser do mundo. Como nem todos visualizam o que compartilho em meu Google Reader, segue aqui o excelente texto:

Pais e Filhos ou: A Mais Longa das Despedidas

Voltei.

Como viram, nas minhas duas semanas de “férias”, não deixei de escrever um único dia. É… Vocês sabem, gosto disso. É o meu trabalho e também o meu divertimento. Às vezes, trabalho e me divirto em excesso, não conseguindo me desligar inteiramente do que considero as minhas “tarefas”. Mas essa história de se desconectar de tudo me parece típica de um mundo pré-economia da informação. A menos que você escolha se esconder num lugar aonde ainda não chegaram luz elétrica nem sinal de telefone, a tarefa se mostra impossível. Agrada-me muito mais a possibilidade de conciliar a natureza com as conquistas da tecnologia — ou seja, a natureza sob controle, uma ambição permanente do homem. Se a gente puder se conectar à rede mundial com o pé na areia, tanto melhor. Foi o que fiz.

Fiquei uma semana em Natal. Foi bastante divertido. Depois, dediquei-me a passeios curtos e a pôr o ponto final num novo livro, que deve ser publicado ainda neste ano — vocês ficarão sabendo de tudo. Já escrevi aqui algumas vezes sobre viagens. Não sou daquelas almas que se entusiasmam tanto com lugares, paisagens, cenários desconhecidos, maravilhas da natureza ou do engenho humano. As paisagens íntimas, está registrado neste blog, interessam-me bem mais. A diminuição do ritmo de trabalho e um convívio fora da rotina com a família permitem que se percebam alguns relevos que, no dia-a-dia, acabam se misturando a eventos rotineiros. As boas viagens servem para descobrir pessoas que estão perto de nós.

É assim especialmente com os filhos, não? Nesses dias, mais próximo das meninas do que de hábito — ou, melhor ainda: próximo como de hábito, mas com uma agenda diferenciada —, pude constatar o quanto cresceram. As viagens nos facultam a oportunidade de conversas especiais, descoladas das imposições do cotidiano. O repertório mudou. Novos relevos morais e éticos se desenharam, e o que sabíamos do caráter de nossos filhos é memória.

Eles já partilham conosco alguns valores para os quais davam de ombros antes e, o que percebi entre o susto e a satisfação, dominam cada vez mais o que eu chamaria de “patrimônio de ironias da família”. Não é só o seu queixo que vai despontando no queixo de seus filhos. Também o currículo oculto do pai e da mãe vai se estampando em olhares oblíquos de censura, em meios-sorrisos de sarcasmo, em anuências benevolentes, no entusiasmo, como diria Musil, pelas coisas “magras e severas” que vamos escolhendo vida afora. Serão continuadores de nossa pequena grande tradição.

Mas também já começam a exibir os sinais de desgarre, seduzidos por um conjunto de fatores que formam o imponderável de cada um. As marcas da individualidade estão numa opinião surpreendente sobre isso e aquilo, que já não revelam mais o que antes era um consenso familiar, mas o que elas próprias — passarei a empregar o feminino, já que falo das minhas filhas — estão fazendo do que fizemos delas.

Os arranjos pessoais de uma metafísica privada se mostram na escolha da roupa para o jantar, no detalhe acrescentado como adorno a uma sandália, nos acessórios com que enfeitam cabelos, orelhas, pulsos, dedos e que garantem que elas pertencem àquelas de sua idade, mas delas se distinguem por essa espécie de manufatura do caráter e da personalidade.

Em toda viagem, há as horas do cansaço. E até os silêncios de cada uma estão cheios de sinais. Numa tarde, uma olhava o mar, como se das vagas pudesse vir a resposta para uma questão tão antiga quanto a gravidade daquele olhar. Outra lia Jane Austen. Eu me comovia. São nossas, mas já não nos pertencem.

Começou aquela que é a mais longa das despedidas.

Quando, há pouco mais de três anos, eu me preparei para a “indesejável das gentes” (by Manuel Bandeira) — dei-lhe um bom drible —, eu sabia haver algo que eu não podia perder. Mas o que era? Agora sei. Eram esses pequenos suspiros. Eu queria ver essa pedrinha brilhante na sandália, tão discreta que é para ser notada na sua quase invisibilidade; eu queria ver aqueles olhos indagando o mar; queria ver aquela testa, que às vezes me parece tão severa, mergulhada em Jane Austen. Ah, começou a mais longa das despedidas, a mais fabulosa de todas as lendas, que é a vida de cada homem.

E não, ainda não vi o bastante. Jamais verei. Quero continuar a jogar, a driblar. Volto a Bandeira: “Quando a indesejável das gentes chegar”, que a última imagem gravada nas retinas seja um detalhe dessa adorável vida banal, tão plena das graves delicadezas com que estas três moças têm me acarinhado.

Vamos lá, meus queridos! À vida e seu ofício.

Escrito por Simone Fernandes

Formada em contabilidade, sempre teve paixão pela palavra escrita, como leitora e escritora. Acabou virando blogueira.

Escreve sobre suas paixões, ainda que algumas venham e vão ao sabor do tempo. As que sempre ficam: cinema, literatura, séries e animais.

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