Mais um texto roubado lá do blog da Cora:
Em meados dos anos 40, Evelyn Waugh reuniu trechos de quatros livros de viagem escritos entre 1929 e 1935 num único volume chamado “When the going was good” (algo como “Quando o ir era bom”). Já na época dos escritos, antes ainda da Segunda Guerra e de todas as muralhas reais e imaginárias que surgiriam pelo mundo em sua decorrência, ele percebia o fim de um estilo de vida e de um tipo de viagem que não se repetiria mais. Jovem, inglês e de classe alta, com conexões nos quatro cantos do império onde o sol nunca se punha, Waugh percorria o mundo sem passagem de volta, sem se preocupar com o tamanho da maleta de mão ou com o peso das malas.
“Entre 1928 e 1937, não tive endereço fixo, nem bens que não coubessem, todos, no carrinho de um carregador”, escreveu. Seu rumo era ditado pela curiosidade e pela necessidade financeira: ele ia aonde os jornais com os quais colaborava lhe pediam para ir, ou aonde farejasse uma boa oportunidade para um novo livro. Foi assim, por exemplo, que, em 1932, veio dar com os costados no Brasil, num programa de índio avant la lettre que o levou de Georgetown, na Guiana Inglesa, a Boa Vista. O relato de sua estada em Roraima é uma sucessão de desastres e de mal-entendidos, sobrepujados por momentos de inenarrável tédio. Sinto informar que, compreensivelmente, não levou boa impressão do país.
O que me fez voltar a este antigo favorito foi o título, que ficou gravado na minha memória desde que o li, e do qual me lembro sempre que os jornais se enchem de notícias como as das últimas semanas. É cada vez mais difícil imaginar, nos nossos dias de vôos atrasados, de overbooking e de outras histórias de horror aeroportuárias, como se viajava quando o ir era bom. Num melancólico prefácio escrito em 1945, Waugh diz que seus dias de viajante ficaram para trás:
“Não há lugar para turistas num mundo de ‘pessoas deslocadas’. Nunca mais pisaremos em solo estranho, com uma carta de crédito e um passaporte (este mesmo a primeira sombra pálida da pesada nuvem que nos envolve), tendo a sensação de que o mundo se abre para nós. (….) Jamais aspirei ser um grande viajante. Eu era apenas um típico rapaz da minha época; nós viajávamos porque era assim. Conforta o meu coração ter ido quando o ir era bom.”
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O ir, como mostra o noticiário, anda péssimo. Para a Espanha, então, nem se fala – mais um pouco, e estaremos apedrejando as agências do Santander. Antes que as coisas cheguem a esse ponto, é bom que os espanhóis tomem tenência: tenho a impressão de que o elegante embaixador Peidró ainda não se deu conta de que o problema é mais da Espanha do que dos turistas deportados. Eles passaram por um enorme perrengue, perderam dinheiro e oportunidades, mas, eventualmente, vão ter a oportunidade de viajar de novo.
Já refazer a imagem da Espanha como país acolhedor e bom destino turístico para brasileiros vai ser mais complicado. De que adianta gastar uma fortuna em publicidade e deixar a porta de entrada na mão de pessoas absolutamente despreparadas para receber visitas? E qual é o sentido de usar a polícia para deter estudantes e viajantes inofensivos enquanto bandos de ladrões agem livremente pelo saguão? A verdade é que ainda estou para encontrar quem viaje com alguma freqüência e não saiba de histórias assustadoras de Barrajas, o aeroporto mais selvagem da Europa.
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Por falar nisso, há uma imagem recorrente bastante perturbadora nos depoimentos dos brasileiros deportados de Madri. Lucimeire de Souza Rocha disse que ficou fechada numa salinha, “como se fosse um cachorro”; Marcos Vinicius observou que os policiais que os prenderam “olhavam de cara feia, como se fossemos bichos”; Elisete, cujo sobrenome me escapou, disse que foram todos “muito maltratados, humilhados, tratados como bichos”; Pedro Luiz Lima conta que reagiu aos gritos do policial dizendo “Olha, não somos cachorros, trate a gente como homens”; Ramon Santana confirma, “fui tratado como cachorro”.
Longe de mim querer desviar o foco da conversa, mas há algo muito errado aqui – e não estou falando do ocorrido na Espanha, a respeito do qual estamos todos de acordo. Quer dizer que, se estivéssemos falando de bichos de verdade, especialmente de cachorros, as maldades dos espanhóis não teriam importância?! Será que é tão natural assim trancafiar bichos, e deixá-los passar fome e sede?!
Ainda que esses sejam cachorros retóricos e que isso seja só figura de linguagem, o fato é que, por trás de expressões assim, há um preconceito que não devia ter mais lugar. Tanto lá quanto cá, já é mais que tempo de tratarmos humanos e não-humanos com o mesmo respeito, carinho e consideração com que gostaríamos de ser tratados.
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Para que os planetas se realinhem e o mundo volte a ser harmonioso, pelo menos no espaço fugaz de duas horas, vocês sabem: há uma felicidade logo ali, no Canecão, embrulhada para presente num dos cenários mais lindos e cintilantes do Gringo Cardia. Não é sempre que se pode ver duas estrelas de primeira grandeza brilhando tão perto e tão intensamente. A generosidade com que Maria Bethânia acolhe Omara Portuondo no seu palco é uma aula de elegância; a alegria e a inteligência do canto de dona Omara são, desculpem o termo tão batido, uma lição de vida.
Melhor, impossível.
(O Globo, Segundo Caderno, 13.3.2008)