A figura do outro no Manifesto Paulista

O outro vira e mexe entra em qualquer conversa: eu só joguei o papel no chão porque o outro joga; eu só fechei aquele carro porque o outro não ia deixar que eu entrasse; eu não dei passagem porque o outro também não daria; eu não consegui o emprego porque o outro me ferrou. O outro pode ser uma pessoa qualquer, ou um conjunto de pessoas a que damos o nome de sociedade – e aí ele normalmente é evocado para explicar a criminalidade, a falta de educação ou algo do tipo.

Alguns jovens paulistas (será que eram paulistanos?) apontam para o outro, no caso o migrante nordestino, para explicar uma série de mazelas urbanas de que hoje sofre a grande cidade de São Paulo. Por culpar ao outro eles se uniram em torno de uma manifesto que deve sim ser chamado de fascista, porque traz em sua essência o mal da única verdade válida. O querido amigo Rob Gordon levantou a questão de que a luta deles já começa morta: ensinar cultura nordestina ou paulista na escola não faz diferença, já que eles não se esforçarão para aprender nada mesmo.

Discordo do querido amigo: quem sabe se a cultura paulista fosse ensinada nas escolas, esses jovens teriam aprendido que São Paulo, tanto a cidade como o estado, é, em essência, formada por migrantes, sejam eles de outros países, sejam eles de outras cidades, sejam eles de quantas gerações atrás fossem. São Paulo é um imenso e rico mosaico, aonde a cada instante e olhando em cada canto conseguimos identificar alguma característica alheia, para acabar por se reconhecer naquele diferente.

Vejam vocês: sou neta de espanhóis e libaneses, meu marido filho de egípcios. Antes deles temos ainda italianos, portugueses e franceses na árvore genealógica. Costumo brincar que minha filha é a prova viva da globalização. Mas, antes de tudo e com orgulho, bato no peito para contar que sou paulistana, assim como minha filha, assim como meu marido. E como paulistana eu adoro correr as ruas da Liberdade, ou descobrir um restaurante mineiro, melhor ainda se tiver por companhia um amigo com sotaque cantado de “Récife”, em meio a chopps e pastéis, chamando a outro de “tabacudo” entre risadas – esse outro que puxa erres e lhe responde que, na verdade, ele se trata de uma “alma sebosa”, como se diz lá no interior de Minas.

Se sou o resultado das experiências que vivi, ou do que fiz delas, sou mais rica porque conheci pessoas que vieram lugares diferentes, vivenciaram outras coisas, conheceram outros jeitos, outros sotaques.

A ideia da eugenia já se mostrava fadada ao fracasso nos idos da Segunda Grande Guerra, imagina hoje, num mundo sem fronteiras, onde o eu aqui na verdade está presente em tantos lugares diferentes graças à rede.

A indicação do tal outro que citei no primeiro parágrafo como responsável pela pobreza ou por crimes, assim, de maneira genérica e preconceituosa, não enriquece qualquer debate , não dá solução a nenhum problema, apenas entristece quem acredita que o ser humano deva ser gregário e não separatista.

Sinto pena de quem acredita que aquilo tudo que escreveram possa ser verdadeiro.

Escrito por Simone Fernandes

Formada em contabilidade, sempre teve paixão pela palavra escrita, como leitora e escritora. Acabou virando blogueira.

Escreve sobre suas paixões, ainda que algumas venham e vão ao sabor do tempo. As que sempre ficam: cinema, literatura, séries e animais.

2 Comentários


  1. Me irmano contigo nessa pena e nesse assombro. É lastimável que existam tantos dispostos a culpar o outro e com tão pouca disposição para fazer realmente a diferença para uma mudança na sociedade.
    estrelinhas coloridas…

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  2. Esse “Manifesto Paulista” em alguns momentos citou em reportagens o MRSP (Movimento república de São Paulo). Convido a senhora para ler nosso posicionamento oficial em: http://www.nacaopaulista.net

    Obrigado.

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